Problema Solucionado
Nos anos 2000, a região da Terra do Meio (PA) se consolidou como um grande mosaico de Áreas Protegidas. Nessa época, a pesca tornava-se uma atividade central para geração de renda das famílias extrativistas, mas apresentava sinais de diminuição de estoques e dependia de regatões que mantinham em funcionamento um sistema de aviamento similar aos dos patrões da borracha, vendendo mercadorias a preços altos e comprando a produção por preços baixos. Como forma de criar alternativas de renda e conseguir formas mais justas de comercialização, moradores das Resex Riozinho do Anfrísio, Rio Iriri e Rio Xingu, se organizaram para buscar compradores para produtos extrativistas tradicionais que estavam sendo abandonados por falta de mercados justos, com objetivos de obter melhores preços para os produtos locais, obter contratos de longo prazo com valores estipulados de modo a dar segurança para o planejamento da economia anual das famílias, obter contratos que respeitassem seus modos de vida e autonomia. Nesse movimento, os moradores das Resex organizaram uma rede de comercialização baseada em cantinas comunitárias e que foi se expandindo para outras Áreas Protegidas.
Descrição
O primeiro passo foi levantar as condições das cadeias produtivas dos produtos florestais não-madeireiros. Em 2010, o ISA e o Imaflora promoveram uma avaliação dos produtos comercializados e com potencial de comercialização. Foram analisadas as cadeias e estimados preços mínimos desejados pelos extrativistas. A partir deste estudo, buscou-se contratos com empresas que respeitassem outros princípios colocados pelos extrativistas, como garantia de preço anual, segurança na comercialização de longo prazo, e promoção e valorização de práticas extrativistas tradicionais. Outro norte foi a diversificação dos contratos e dos produtos, de modo que as famílias pudessem escolher com quais produtos trabalhar e ter mais de um produto ao longo do ano (de acordo com os meses de safra), aumentando a renda e diminuindo riscos. Esses princípios foram a base para elaboração de um protocolo comunitário que passou a orientar todos os contratos com empresas. Os primeiros contratos foram estabelecidos ainda em 2010 e em 2011, para a venda de borracha e óleo de copaíba. Depois, em 2012, veio o contrato para a venda da castanha e em 2016 para a venda do mesocarpo do coco babaçu.
Após os contratos iniciais foi criada uma estrutura para comercialização dos produtos locais baseada em cantinas (entrepostos comerciais para a entrega da produção e aquisição de mercadorias). O objetivo da cantina era criar um posto de comércio que permitisse adiantar mercadorias para as famílias enquanto elas trabalhassem nas safras. Para tanto, as cantinas receberam recursos de capital de giro (em parte doados pelas empresas parceiras e em parte adquiridos através de editais e projetos) em montantes compatíveis com a demanda dos produtores atendidos.
Cada cantina tem um cantineiro, responsável pela administração e escolhido pelas próprias comunidades (ou conjunto de comunidades atendidas) através de eleição. A posição do cantineiro é reafirmada constantemente, através de reuniões comunitárias periódicas nas quais se discute o funcionamento da cantina como um todo, sendo possível à comunidade sugerir mudanças a qualquer momento. Esse modelo permite uma administração localizada, com acordos comunitários distintos (por exemplo, uma comunidade pode decidir que sua cantina venderá mercadorias a dinheiro, enquanto outra que só venderá mercadoria a troco de produção). Para que as cantinas prosperem, os cantineiros recebem acompanhamento do ISA, com visitas periódicas a cada dois ou três meses para capacitação constante para administração das cantinas.
Os resultados da experiência das primeiras cantinas animou novas comunidades a abrir suas próprias cantinas. Somente nas Reservas Extrativistas houve um salto de 2 para 14 cantinas entre 2011 e 2016. As Terra Indígenas também passaram a integrar o sistema de comercialização baseado em contratos e nas cantinas. Em 2013, povos indígenas do Xingu começaram a trabalhar junto à TNC para a abertura das primeiras cantinas nas Terras Indígenas Xipaya e Kuruaya. Em 2014, mais quatro novas cantinas foram instaladas em Terras Indígenas da região.
Por partilharem os mesmos contratos e um mesmo modelo básico de comercialização, as cantinas espalhadas pela Terra do Meio decidiram se organizar em um coletivo mais amplo, que recebeu o nome de Rede de Cantinas da Terra do Meio. Os membros da Rede se encontram ao menos uma vez por ano, em evento chamado “Encontro dos Cantineiros”, onde trocam dicas sobre a administração da cantina e experiências inovadoras de cada comunidade. Discute-se o direito dos povos indígenas e tradicionais a suas áreas de floresta e a sua autonomia, tratando de problemas comuns aos territórios e às cadeias produtivas, como invasões, o acesso a áreas de uso dentro de Unidades de Conservação restritas, ou então a exploração de novas áreas partilhadas entre diferentes comunidades. Cada cantineiro também traz a demanda de mercadorias de sua comunidade para o próximo ano e são realizadas cotações nos comércios da cidade para compra e transporte coletivo de mercadorias, diminuindo custos e entregando mercadorias mais baratas nas comunidades. Os cantineiros também mantêm comunicação por radiofonia para debater os problemas de administração e trocar informações sobre safras e estoques de mercadorias, bem como negociar empréstimos e trocas de produtos e mercadorias entre cantinas, de modo a otimizar o uso do capital de giro distribuído entre elas.
Outro momento fundamental é a Semana do Extrativismo, encontro anual que reúne as comunidades e representantes de governo e de empresas. Esses representantes visitam as Reservas Extrativistas e são apresentados para o modo de vida e as formas de produção locais. Nessas ocasiões, os representantes e os comunitários renegociam o preço dos produtos e fecham acordos sobre padrões de qualidade e formas de pagamento. A Semana do Extrativismo é o momento de reforçar laços com antigos parceiros e de se apresentar a novos parceiros comerciais, negociando novos contratos.
Recursos Necessários
Cada uma das cantinas que compõe a rede de cantinas da Terra do Meio necessita, acima de tudo, de uma disposição e demanda de uma localidade, a escolha de um cantineiro, a elaboração de regras de funcionamento e um capital de giro inicial que depende da quantidade estimada que será produzida localmente em cada safra. Além disso, para seu bom funcionamento, é necessário um processo de acompanhamento e formação do cantineiro para a gestão dos recursos do capital de giro e questões da qualidade da produção. Fisicamente a cantina pode começar funcionando em estruturas improvisadas, mas idealmente, na medida em que ela é apropriada e consolidada na localidade, ela funciona com espaço físico próprio para armazenar mercadoria e produção e para funcionar como escritório. Além disso um paiol para trabalhar a qualidade e secagem de alguns dos produtos que ela "gira". Na realidade da Terra do Meio o custo dessas construções e de equipamentos simples de escritório e qualidade da produção estaria em torno de 30000 reais.
Resultados Alcançados
Estabelecimento de contratos para compra de borracha, castanha, copaíba, e mesocarpo de babaçu. Esses contratos garantiram segurança e opção para as famílias extrativistas, permitindo melhor planejamento anual de suas atividades produtivas e diminuindo os riscos com oscilação de preços nos mercados. Esses produtos também levaram à promoção de atividades que conservam a floresta e que respeitam os modos de vida tradicionais de ribeirinhos e indígenas, promovendo também a permanência no território e a consequente consolidação das Áreas Protegidas da Terra do Meio.
Criação da Rede de Cantinas, que garante maior poder de negociação com compradores de produtos e com fornecedores de mercadorias e de transporte. A Rede de Cantinas também passou a ser um ator importante para a gestão comum do mosaico de Áreas Protegidas, debatendo ações relacionadas ao uso dos recursos do território e a fiscalização por parte das comunidades.
Criação de espaços de debate e decisórios relativos à organização produtiva, como o Encontro dos Cantineiros e a Semana do Extrativismo. O primeiro voltado para a organização interna e o segundo com caráter de negociação direta entre extrativistas e empresas compradoras, aumentando a transparência nos diversos elos da cadeia. Isso permite a troca de experiências e melhores entendimentos sobre os custos de produção e sobre os padrões de qualidade exigidos pelos compradores e facilita a negociação dos contratos.
Criação de um modelo de comercialização descentralizado que permite, ao mesmo tempo, a autonomia da comunidade e a replicação do modelo em outras áreas, sem depender de uma organização política ou administrativa centralizada. O modelo garante o controle da comunidade sobre a gestão dos recursos das cantinas e o seu funcionamento, o que permite a adaptação do modelo a diferentes realidades comunitárias e a inclusão de ribeirinhos de diferentes rios e povos indígenas de diferentes Terras Indígenas. Assim, entre 2011 e 2016, houve participação crescente de famílias no novo modelo produtivo construído na Terra do Meio. Isso resultou em um aumento do capital de giro total injetado nas cantinas das Reservas Extrativistas, de R$20.000,00 para mais de R$400.000,00. Nesse mesmo período, o faturamento com a produção entregue por ribeirinhos e indígenas nas cantinas saltou de R$17.897,00 para R$399.511,00, um aumento de mais de 2100%.
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