Problema Solucionado
Atravessamos um momento em que problemas de saúde pública e impactos ambientais colocam risco à vida humana de forma extrema. Muitos são decorrentes do modelo predominante de sistema alimentar. Observa-se um consumo excessivo de alimentos processados, levando a níveis alarmantes de obesidade e outras doenças. Além da ameaça à saúde humana, também ameaça a diversidade biológica e cultural, expondo uma alimentação mundialmente padronizada. Estima-se que 70% da alimentação humana provém de apenas 5 espécies cultivadas em sistemas de larga escala de alto impacto ambiental e social. As culturas tradicionais foram se perdendo a favor de uma produção de comodites, e com isso também milhares de variedades e raças crioulas. Evidencia-se o distanciamento das dimensões cultural, social, afetiva e ambiental da alimentação. Vive-se um momento que em pouco se conhece sobre os alimentos, quais são, de onde vêm, sendo extremamente comum crianças e jovens não reconhecerem muitos vegetais in natura. Essa situação complica o processo de escolhas e educação alimentar, refletindo numa piora da saúde pública e dos sistemas ecológicos e das questões sociais, principalmente nos ambientes rurais.
Descrição
O percurso sensorial é uma poderosa ferramenta metodológica para se trabalhar a relação das pessoas com os alimentos. O diferencial das ações educativas do movimento Slow Food é associar a alimentação ao prazer, à cultura e à convivência, e também à origem dos alimentos, não se prendendo exclusivamente aos aspectos nutricionais e de saúde. O Percurso Sensorial foi inicialmente proposto pelo Centro de Estudos do Slow Food na Italia, com o objetivo de despertar as pessoas para perceberem as qualidades organolépticas e sensoriais dos alimentos, e a partir daí refletir o quanto essa relação é atropelada pelas correrias do dia a dia, e quão pouco se presta atenção às experiências que o alimento fornece a todos os nossos sentidos. Esse momento acaba revelando o quanto somos guiados pelos estímulos visuais e todos os impactos que isso gera no processo de escolhas alimentares que são feitas diariamente. Para isso, foi dado um viés educativo às ferramentas da análise sensorial, que é profissionalmente utilizada no setor de alimentos e bebidas, conhecidamente da enologia. A atividade se divide em 6 bases, uma para cada sentido e uma polissensorial, a última, estimulando que os alimentos fossem degustados com todos os sentidos. Em cada base, ou sentido, é proposto um incentivo ou desafio e dado um tempo para o participante estabelecer a relação, treinar o sentido, se abrir para as novas sensações. Nessa primeira versão proposta para o percurso, uma ficha impressa indicando os "desafios" acompanha cada participante. Como exemplo de desafio pode-se ter a ordenação do gradiente de densidade para diferentes concentrações de uma solução de cor dispostas em recipientes transparentes. Ou pode-se perguntar quais os produtos que estão nos sachês do olfato... Há uma série de possibilidades que podem ser exploradas. Em anexo, há um manual de educação sensorial com muitas sugestões. Essa atividade pode ser desenvolvida e adaptada para todas as idades, públicos, contextos locais, regionais. Dessa forma, a rede do Slow Food no Brasil que tem desenvolvido o percurso sensorial foi adaptando a ferramenta para situações diferentes, para públicos diferentes e principalmente para que ela representasse o contexto alimentar e da biodiversidade nacional. Hoje, temos registradas muitas formas de fazer, e há muitas ainda a se inventar. Atualmente, temos usado uma forma que se explora mais o sensorial-emotivo, do que o sensorial-técnico, incentivando ao máximo a real conexão das pessoas com os produtos naturais e o uso dos sentidos. Nessa versão, ao invés de propormos a ordenação das soluções em concentração diferente (mais técnico, como na análise sensorial), propomos a observação das cores e formas dos produtos, por exemplo. Na base multissensorial, ao invés de se propor uma análise sensorial literal, com a comparação dos sabores mais acentuados, das consistências etc entre diferentes amostras de um mesmo produto, propomos uma degustação com comidinhas produzidas com os ingredientes locais e temperos frescos, incentivando o participante a vivenciar todas as sensações que os alimentos nos despertam. O(s) facilitadore(s) da oficina podem fazer uma introdução à atividade que crie um contexto mais ou menos lúdico, mais ou menos técnico, mais ou menos emocional, em função do público e do que se quer ressaltar. O grande poder desta tecnologia social é utilizar os sentidos, que é o que realmente toca as pessoas, para promover a reflexão e um novo olhar sobre o próprio consumo e a valorização que se dá aos alimentos. O percurso pode ser realizado numa sala de aula, por exemplo, passando cada produto de mão em mão, ou também pode-se realizar num parque como uma aventura "pelos sabores perdidos" de forma mais lúdica, com uma base em cada lugar, misturando um pouco de jogo/ caça ao tesouro. Entre esses dois exemplos, há uma ampla gama de maneiras que já foram feitas ou ainda podem ser recriadas. Ao final, de todas as bases, deve-se chamar todos os envolvidos para uma reflexão coletiva. No caso de ter escolhido a forma mais técnica, pode-se ir questionando o que sentiram em cada base. "O que sentiram na caixa do tato?" "O que acham que tinha nos sachês olfativos" " Qual a diferença entre amostra x e y?", mas também propor mais profundas como "No dia a dia, vocês dão atenção a quais sentidos para se fazer uma escolha alimentar?", "O que leva você a escolher um alimento e não outro?" "Quais os sabores que você tem mais tendência a gostar? Porquê?", "Porque não se usa as frutas que têm ali no quintal, mas se compra suco no supermercado"..... São infinitas as perguntas, os caminhos e as formas de realização dessa atividade. O facilitador deve sempre adaptar conforme o objetivo, público e local. Numa escola de cidade metropolitana, por exemplo, pode-se propor uma degustação de diferentes chocolates. Já numa comunidade rural do semiárido, isso não faria sentido, e então deve-se sugerir uma degustação com preparos inovadores com as frutas locais.
Recursos Necessários
O percurso sensorial pode ser realizado de forma mais econômica ou mais custosa. O essencial é um kit para disponibilização de produtos alimentares de forma esteticamente agradável, produtos e ingredientes naturais locais, frescos ou secos, produtos para degustação sanitariamente seguros. Usar ao máximo a biodiversidade local, o que pode vir do próprio quintal, ou comprado em feiras de agricultores e armazéns locais. Para cada sentido, há uma "base", cada uma pode ser alocada em um local diferente, como uma mesa ou uma toalha estendida ao ar livre. Ou então pode ser uma forma simplificada, dispondo o material de cada sentido, um após outro. No caso de uma sala escolar, o monitor pode passar uma caixa de cada vez. Na base olfato, preparar sachês com pano de saco, de forma extremamente simples, ou usar porta temperos opacos, com pelo menos 3 amostras de produtos olfativos. Na visão, pode-se expor alimentos em diferentes estágios de maturação ou deterioração, pode-se mostrar soluções em potinhos transparentes. Na audição, oferecer alimentos de diferentes consistências, alimentos que emitam som ao serem tocados/chacoalhados ou um aparelho eletrônico reproduzindo áudios previamente gravados. No tato, utilizar sacos ou caixas opacos com alimentos de diferentes texturas. Alternativamente, pode-se usar vendas. No paladar, potes com diferentes sabores, e no polissensorial, comidinhas locais. Pode-se utilizar uma ficha impressa para a análise sensorial.
Resultados Alcançados
O percurso sensorial é um das principais atividades realizadas pelo movimento Slow Food, no âmbito das atividades educativas. O Slow Food tem grupos ativos em 160 países contando com 100.000 membros e voluntários. No Brasil, seus membros se dividem em 59 convívios (os núcleos de ação locais) espalhados por diversos cantos do país. A grande maioria desses convívios realiza periodicamente, ou já realizou, o percurso sensorial, tanto para seus membros, ou em escolas públicas, instituições e comunidades rurais. Essas ações costumam se realizar voluntariamente ou custeadas por campanhas locais de captação de recursos. Além disso, membros, profissionais e técnicos realizam o Percurso Sensorial de forma independente, voluntariamente ou em parceria com instituições como o SESC, por exemplo. A taxa de envolvimento e entretenimento do público que participa é praticamente 100 %, independente do público e faixa etária. A curiosidade de quem participa é sempre instigada e com isso, surge o interesse de querer conhecer melhor os produtos que foram usados, relembrar os contatos anteriores, imaginar formas de uso. A organização não tem um acompanhamento sistematizado, mas acredita-se que essa prática seja muito poderosa por transformar, primeiramente o olhar que as pessoas têm dos alimentos. Em um nível mais profundo, mas com uma taxa menor de conversão, acredita-se na transformação de hábitos alimentares e de divulgação da experiência para amigos e familiares. A transformação ocorre desde que a atividade seja feita num ritmo e linguagem adequada ao público alvo.
Dentre os resultados qualitativos que foram observados a partir do Percurso Sensorial, destacamos:
- Mais membros e afiliados agregados ao Slow Food na busca por uma alimentação boa, limpa e justa.
- Mais consumidores conhecendo e consumindo mais os produtos de origem local e regional, produzidos de forma limpa e justa, artesanalmente ou em pequena escala.
- Jovens e crianças tendo despertado interesse por alimentos que podem vir a compor a alimentação escolar, que dantes não tiveram receptividade.
- Comunidades de produtores rurais e costeiros tendo maior apreço pelos próprios produtos e incorporando-os na própria alimentação, quando em muitos casos eram somente para venda.
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